A escritora argentina Selva Almada não escreveu apenas um livro, ela fez uma investigação sobre casos de feminicídios que aconteceram há cerca de 25 anos em seu país. Sua ideia, em Garotas Mortas (Todavia), era dar pelo menos uma justiça poéticas a mulheres que foram assassinadas e esquecidas.
Hoje, muito se fala em feminicídio, mas há décadas a violência contra mulher não tinha a mesma atenção da mídia e das pessoas como agora. Em uma conversa exclusiva à COSMO que eu mesma fiz, Selva falou sobre como a Argentina luta contra esse crime atualmente.
O que a fez ter vontade de investigar casos como esses?
Feminicídios apareciam cada vez com mais frequência na imprensa, ocupavam a primeira página, falávamos disso o tempo todo. Logo esse caso era substituído por outro. Dizíamos coisas como: “isso está na moda” ou “antes não acontecia”, como se fosse um fenômeno do novo século. Já conhecia o caso da Andrea Danne porque aconteceu em uma cidade vizinha a que eu morava quando era adolescente. Vinte e cinco anos já tinham se passado. Por causa disso, eu pensava: “Isso já acontecia antes, nós só não dávamos importância, eram crimes encarados como algo natural. Não se chamava feminicídio, e sim, crimes passionais. Quase como dando uma aura romântica, de novela, a algo que de qualquer ponto de vista é considerado horrível.
Foi assim que tive a ideia de primeiro escrever sobre a Andrea. Depois as histórias de Maria Luisa e Sarita se tornaram algo cada vez mais certo para mim, Queria falar dos casos que tinham cerca de 25 a 30 anos, histórias que na época passaram despercebidas, casos que tinham terminado com agressores impunes. Era importante para mim relembrar o passado em vez de abordar os mais recentes. Queria dar uma perspectiva histórica, mesmo que fosse pequena, e uma justiça poética a essas mulheres que hoje teriam minha idade, mas que foram assassinadas arbitrariamente.
Como é o cenário da Argentina na luta contra o feminicídio hoje?
Por sorte, nos últimos anos o machismo está mudando. Em junho de 2015 (um ano depois da publicação do meu livro), surgiu o movimento Ni Una Menos (Nenhuma a menos, em português): uma menina de 14 anos grávida foi assassinada pelo namorado, da mesma idade, que teve a ajuda da família para enterrar o corpo na parte dos fundos de sua casa. Foi um caso que comoveu as redes sociais e rapidamente um grupo de mulheres jornalistas começaram a convocar uma marcha que agora acontece todos os anos. Ela é imensa.
Acredito que pela primeira vez a dimensão real do problema foi notada. Até as pessoas que não estavam envolvidas no assunto começaram a perceber que a violência sexista é um caso para todas na sociedade. Claro que já estávamos falando desse tema há alguns anos, uma Lei contra o feminicídio foi sancionada em 2012 e existiam campanhas incentivando as mulheres a denunciar. Mas acredito que o Ni Una Menos ajudou a chamar todas as mulheres para a rua para dizer um basta. Temos um longo caminho ainda, que estamos construindo dia a dia. Com cada vez mais mulheres abraçando o feminismo, os valores contra os moldes machistas vão penetrando na sociedade.
Acredita que é importante falar do feminicídio para que cada vez mais a sociedade se atente a esse tipo de crime?
Absolutamente. Não existe uma receita mágica para acabar com o machismo. A única maneira é falar e refletir constantemente sobre o assunto. Vivemos e somos criadas em uma sociedade patriarcal, que é algo tão latente a nossa cultura que não se muda do dia para a noite. E não é só um assunto da escola, família e Estado. É algo que todos temos que falar, não importa o lugar que ocupamos. Claro que o Estado tem que estar mais presente, mas não podemos deixar esse problema só em suas mãos. Temos ainda muitos preconceitos para destruir, desde a sociedade aos meios que comunicação que, às vezes, ajudam a dar força a esses pensamentos. Por exemplo: colocar o foco na vítima é algo muito comum cada vez que acontece um caso de feminicídio. Buscam na vida privada da vítima argumentos para explicar porque a assassinaram. É um absurdo! É quase como dizer que ela estava querendo passar pelo que passou.